sexta-feira, 29 de abril de 2011

O espantalho.

Ele era um espantalho, fora feito, como todos os outros espantalhos, de trapos e preenchido com palha. Usava roupas velhas e surradas do dono da plantação de arroz que protegia. Era um espantalho como qualquer outro, levava um chapéu de palha na cabeça, para algumas crianças da região possuía até um aspecto assustador, contavam lendas sobre ele, de que ele criava vida à noite e atacaria as crianças bagunceiras.
Mas na verdade ele era um bom espantalho, mesmo não sendo lá tão feliz, e era completamente inofensivo para as crianças. Ele sorria o tempo todo, não de alegria, mas apenas porque haviam costurado seu rosto daquela forma. Ele, como já disse antes, não era feliz, e isso por causa de sua eterna solidão, visto que tanto pássaros quanto crianças o temiam e os adultos o viam apenas como um objecto para espantar pássaros - coisa que de fato ele era.
Assim continuava o triste espantalho, sempre solitário em meio à sua plantação - pois, com toda a solidão, aquele arroz era tudo que tinha - até que um dia, durante um cochilo seu em uma tarde, acordou com um lindo canto. O espantalho ficou então enamorado pela linda voz, e olhou para todos os lados à procura da cantora. Era uma formidável Tiê-sangue, de, apesar do nome, bela plumagem bege. É claro que tudo isso aos olhos do nosso enamorado espantalho, porque, mesmo com um certo charme, ela não era a Tiê-sangue mais bela do mundo.
Ao primeiro momento, o espantalho ficou completamente embasbacado pela doce Tiê, mas logo recobrou os sentidos e foi cumprir sua função.
- Saia daqui! Deixe minha plantação em paz!
A Tiê assustou-se, parando de cantar e depois recuando.
- Desculpe-me, senhor espantalho, não tenho a intenção de destruir sua plantação.
- Mesmo se não tivesse, pode ir saindo! - O espantalho mostrava-se bravo, mas era apenas de sua costurada boca para fora.
- Perdão, realmente, eu apenas me perdi de meu bando, você não viu um bando de outros Tiê-sangues indo passando por aqui?
- Oh, desculpe-me então, eles foram para o sul, se não me falha a memória.
- Muito, obrigado, senhor espantalho. Até mais. - disse a Tiê fazendo algo semelhante a um sorriso com seu bico.
O espantalho nada mais disse, apenas manteve seu tradicional sorriso na cara, mas dessa vez era sincero. Ela foi embora a cantar, e ele nunca mais esqueceu aquela maravilhosa voz. Até hoje ele se lembra dela, por mais que ela tenha partido e nunca mais vá voltar, para ela ele foi apenas um espantalho qualquer, mas para ele ela foi o único ser que o tratou como mais que algo feito para assustar, ela foi o único ser que o respeitou, e disso ele nunca vai esquecer.

O espantalho.

- Haha, espantalho, feio, bobo! - Gritavam em coro as crianças enquanto passavam pela ponte que o espantalho guardava. - Ninguém mais tem medo de você, vá embora!
O espantalho, desmotivado, cansado, simplesmente ignorava todas as ofensas. Sentava-se numa pedra, tirava seu velho chapéu, passava os dedos finos pelo cabelo de palha e suspirava. Olhava para cima com seus olhos de botão e sua boca costurada se desdobrava num arco de tristeza.
De longe, uma garota sempre o observava, com dó de sua dôr, mas nunca fazia nada, pois do espantalho sentia pavor.
Todo o dia a cena se repetia: o espantalho na ponte, as crianças passando, ele se aproximava, elas o atacavam, ele ia embora, sentava-se numa pedra.
E a garota sempre observava, enrolando suas tranças, criando confiança.
Um dia, depois de muito esperar, o espantalho ela foi ajudar.
- Espantalho idiota, você não assusta ninguém, vai embora! - Elas diziam pulando.
- Deixem-no em paz, não vêem que mal ele não faz? - A garota disse aos berros, ficando entre o espantalho e as crianças de braços abertos. - Ele só quer um amigo, não representa perigo.
As crianças pararam, não percebiam as intenções do espantalho, só viam como ele era feio e diferente, e por isso o rejeitavam. Eles se distanciaram e deixaram a garota falar com ele.
- Por que você resolveu me ajudar? Ninguém nunca me ajuda, não faça isso. - Disse o espantalho com um ar de espanto na voz.
-Oras, todos merecem uma chance, mesmo que por um instante. Não é porque você não é normal que fará algum mal. - A garota respondeu, e seu rosto enrubesceu.
O espantalho olhou para cima, bem distante, se seus olhos não fossem botões, com certeza teriam brilhado.
- Então você realmente quer me ajudar? Está disposta? - Ele indagou agitado, e quando a menina meneou a cabeça dizendo que sim, abraçou-a. O abraço era forte mas macio, ele não a soltava. Porém, começou a apertar mais, a pegou pelos braços e a jogou pela ponte. A garota não teve reacção além de cair.
As crianças assombraram-se com a acção do espantalho e foram ajudar a garota. - Quem será o próximo que irá para a a água?! - Rugiu o espantalho. Ergueu os braços e tentou pegar o primeiro, que escapou e fugiu assustado. Os outros com medo foram atrás dele e deixaram a garota com o doentio boneco de palha.
Voltando para onde jogara a garota o espantalho foi conferir seu trabalho.
- Nem todo mundo é bom, ou quer amigos, eu não sei se você entenderá, mas a minha função é essa: assustar. Eu sou um espantalho, eu espanto. Mas agradeço o seu carinho e por isso te deixarei ir de fininho.
A garota, que havia caído n'uma espécie de ninho, no qual o espantalho dormia, não sabia o que dizer. Com medo apenas sorriu, olhou para seus olhos de botão, olhou para o chão e levantou-se.
- Eu ainda quero que seja meu amigo, mesmo que eu corra perigo. Eu não tenho medo. - Lhe disse em segredo, antes de partir.
O espantalho nada disse. Sentou-se na pedra e olhou para o céu, mas se seus olhos não fossem botões, teria derrubado uma lágrima de solidão.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Amnésia.

Quem sou eu?
Onde estou?

Que fazeis aqui?
Quem sois vós?

Não me lembro de nada.
Esqueci-me de tudo.

Que faço eu agora?
Recomeço minha vida?

Estou com medo.
Estou confuso.

Não reconheço ninguém.
O rapaz do espelho.
As pessoas ao meu lado.
Minha mente é plena escuridão.
Medo. Confusão.

Oh, vejam, lá se vai minha amada.
Linda, com pele de marfim.
É a única para mim.
Sem ela não sou nada.

Dela eu me lembro.
E já consigo ver claramente.
Para celebrar esse momento.
Cinquenta poemas eu farei.
Para aclamar esse amor.

Amnésia.

Hoje, pelas paulistanas ruas, fui abordado por uma moça.
Era loira, simpática, jovial e estridente.
Era bonita ao seu jeito,
Embora em um concurso de beleza não fosse campeã,
Era deveras jeitosa, na minha opinião.

Mas os atributos dela não são o motivo por que estou a escrever.
A tal loira disse-me que era minha amiga
E que conhecia-me há um bom tempo.
Em um primeiro momento estranhei.
Juro, nunca a havia visto antes.
Ela provava o contrário mostrando saber muito sobre mim,
Meu passado e minha família

Disse-me que eu era um rapaz feliz,
 Adorava a vida e não ligava para políticas
Ou para o povo.
Disse também que eu era um eterno apaixonado,
Ao que me parece eu até a amava.
Por fim disse que sentia minha falta,
E que adoraria viver novamente aqueles velhos tempos.

Enquanto escrevo, admito:
Não consigo acreditar que esqueci de tudo isso
Estou a adoecer? Atingiu-me a Amnésia?
Agora sinto saudade do que não lembro de ter vivido.
Por deus! Como posso tê-la esquecido?!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Ouro.

Por que dão tanto valor ao ouro? Honestamente, o ouro é apenas um metal, um bom condutor de eletricidade e um metal bastante resistente à corrosão, isso é verdade, mas vocês não dão valor a ele por ele ser um bom metal.
Parece que alguns o adoram porque ele é belo, apenas por isso. Se é assim, eu conheço muitas coisas que, devido às suas respectivas belezas, deveriam ser vendidas ao preço do ouro: lugares, coisas diversas, pessoas - embora isso seja algo, acredito eu, ilegal - e até ideias lindíssimas, mas, pelo que sei, não os valorizam tanto.
Ouvi dizer também que gostam do ouro porque ele é raro, disseram-me que não se encontra o ouro facilmente. Se é assim, que valorizemos o amor, os sorrisos, os amigos fiéis, os sentimentos sinceros, os abraços quando se está triste, as pessoas verdadeiras, a honestidade, os momentos inesquecíveis, a bondade e outras coisas que não se encontram facilmente. Se é assim, valorizemos aqueles que resistem nos dias de hoje, aqueles que não deixam ser alienados, aqueles que tentam fazer a diferença nesse mundo, apesar da falta de reconhecimento. Valorizemos aqueles que querem ser como o ouro, mas que não exigem os louros que isso lhes reserva. E, acima de tudo, tentemos ser como o ouro.

Ouro.

Ela era feita de ouro. Ela brilhava, reluzia. Ela tinha tanto valor. Custava tanto. Ele era pobre, nunca poderia ter tanto ouro. Era querer demais.
Ele sempre a via de longe, sempre a brilhar, cada vez mais. Todos a circulavam. Ninguém a tocava, ela era intocável, era ouro.
Um dia apareceu um rapaz, ele parecia ser de ferro, algo bem mundano, nada de mais. Nada que chegasse aos pés do ouro da garota. Mas ele a teve.
"Como um cara de ferro, um qualquer, conseguiu ficar com ela?! Eu sou melhor que ele."
Aproximando-se ele percebeu algo que não pôde ver de longe. O cliché. Viu o cliché, ao perceber que a garota era latão. E reluzia como ouro.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Rebanho.

Havia uma mulher na TV.
Uma mulher que cantava e dançava.
Todos paravam para a ver.
E cantavam e dançavam.

Tudo o que fazia,
todo mundo repetia.
Tornou-se febre, sensação.
Quase religião.

E seus seguidores cresciam.
A amavam cegamente.

Mas um rapaz achava isso estranho.
"como não veem que são apenas um rebanho?"

Ele mudaria o mundo,
mostraria a todos o que acontecia.

De início, desconfiavam.
Chamavam-no de louco.
Mas pouco a pouco,
um a um, acreditaram.

Iniciou-se a revolução.
Um rapaz, guiando a nação.

Ele era aclamado,
e ergueu seu punho como se ergue um cajado.

Todos o seguiam, um conjunto de animais.
Para se tornarem individualmente,
iguais.

Rebanho.

Há esse rebanho.
E, antes de tudo, que fique avisado que ninguém os guarda.
Alguns dos cordeiros até crêem
Que alguém olha por eles,
Mas não há ninguém que deles cuide.

Na verdade há apenas um fazendeiro
Que manda nos pastores
Que, controlados pelo fazendeiro, controlam o rebanho.
Mas esse fazendeiro pouco se importa com os cordeiros
Apenas se preocupa quando não produzem o suficiente.

Os carneiros não sabem que são controlados.
Vão de lá pra cá e de cá pra lá
Sem sequer questionar nada.

Alguns até percebem essa manipulação
E tentam fazer algo.
Mas logo depois são repreendidos,
Chamados de ovelhas negras - ou vermelhas, em alguns casos.

Eles pensam que são felizes
Pois o fazendeiro as faz acreditar nisso.
Apesar de toda desgraça
E da alienação ovina,
Há esse rebanho.

domingo, 17 de abril de 2011

O livro.

Minha querida, estou a escrever um livro. A história é simples: um rapaz conhece uma linda garota, eu me apaixono por ti, ela o ama de volta, ama pouco, é verdade, mas ama. Realmente lindo, mas por fim, num final infeliz para ele, você vai embora. Incrivelmente triste, não é?
Ah, decerto que dará um bom livro. Ninguém poderá negar que há-de ser um best-seller, aliás, acredito que foi Henry Miller quem disse que a melhor maneira de se esquecer uma mulher é transformando-a em literatura, e, por deus, como isso está a funcionar. A cada dia misturo-me mais com meu protagonista, - o qual, curiosamente, lembra-me bastante de mim mesmo - e a cada dia apaixono-me mais pela garota por quem ele é apaixonado - a qual, devido a outra ironia do destino, parece-se contigo.
Assim, continuo a escrever sobre esta trágica história de amor onde um lindo amor vivido por um jovem ingénuo e uma jovem idealista morre por culpa dos medos e inseguranças desse rapaz. É uma história simples, não tem muitas coisas que nunca foram vistas na literatura, mas é algo palpável, algo que dois jovens comuns, como nós, por exemplo, poderiam viver.
Assim, continuo a viver, escrevendo e lendo constantemente. Mas não importa quantos romances eu leia ou escreva, para mim nós sempre seremos o melhor livro já escrito.

O livro.

Era um livro comum, mas era o primeiro livro que lera. O primeiro que conseguira ler sozinho. Lembra-se de sair correndo para dizer à sua mãe que leu o livro todo. Ela o parabenizou, ele sorriu. Mal podia dormir, sua mãe disse que estava crescendo, ele não entendia muito bem o que leu, mas entendia que leu, e bastava. Abraçado ao livro, sorrindo, dormiu.
Sonhou um sonho. Era o herói do livro, o príncipe da estória. Socorria a mocinha, vencia o vilão, e ficavam todos os bons felizes.
Acordou, já estava mais velho e ficou surpreso ao ter sonhado com o livro de sua infância. Desde que lera pela primeira vez nunca mais o tocou, e resolveu lê-lo novamente. Ao ler, viu como a estória era infantil e simples, mas a mensagem e o signifcado do livro para ele bastaram, era seu livro predileto, afinal. Sempre carregava consigo, embora nunca mostrasse a ninguém, pelo fato do livro ser de criança.
Era uma garota comum, mas a primeira garota que gostara. A primeira que se apaixonara. Lembra-se de sair correndo para alcançá-la e dizer tudo o que sentia. Ela o beijou, ele sorriu. Mal podia dormir, ele estava crescendo, não entendia muito bem o que sentia, mas estava com ela, e bastava. Lembrou de tudo, do livro, da garota, e sorrindo dormiu.
Sonhou um sonho. Era o herói do livro, o príncipe da estória. Socorria a mocinha, e a mocinha era a garota. Ficavam todos felizes.
Acordou e percebeu que a estória tornou-se história, a história dos dois. Queria escrever um livro. Mas não era capaz, só conseguiu ler a estória do príncipe, que salvava a mocinha e vencia o vilão. Para sua garota, para seus filhos, para todos, sempre contava sua estória e sua história. A do livro. A do coração.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Escritor.

Dia desses conheci um rapaz,
ele era escritor.
Era famoso, com livros lindos,
mas o rapaz, pobre rapaz,
era tão sem vida,
sem romance.
Perguntei a ele
como podia escrever livros tão belos,
e ter uma vida tão morna.
E ele me disse que todo escritor é um mentiroso
e só escreve sobre o que não sente.
Por isso toda história sua,
tinha um final feliz.

Escritor.

Disseram-me que não deveria ser assim.
Que deveria fazer algo sério,
Ou algo bom de minha vida.

Sugeriram que fizesse um bem à humanidade.
Que curasse pessoas das mais diversas moléstias
Que as salvasse do sofrimento.

Pediram-me que procurasse iluminar o caminho
De mentes assíduas pelo conhecimento
E que deveria fazer pesquisas sobre o mundo.

Disseram-me que sou deveras inteligente.
Que não deveria ter tais ambições
Que este não é o futuro que mereço.

Mas se devo curar pessoas e iluminar caminhos,
Há maneira melhor que curando corações e fazendo pessoas pensarem?
Há futuro melhor que ser um escritor?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Sob a luz forte.

Estavam em um vasto salão, mesmo que não soubessem, porque tudo que viam era uma tremenda escuridão. Nada viam, mas muito ouviam e sentiam. 
Uma algazarra, era isso que se podia ouvir. Por todos os lados as pessoas - e eram muitíssimas pessoas -  gritavam: queriam saber onde estavam, quem os levou até lá, com quem estavam e coisas do género. Gritavam e gritavam.
Empurrões, era isso que se podia sentir. As pessoas empurravam umas às outras em tremendo desespero, batiam nas paredes buscando por uma saída, mas sem sucesso. Mas mantinham a esperança, se uniam e tentavam encontrar uma porta ou janela.
Com o tempo as pessoas começaram a se acalmar. Horas depois, imensas luzes se acenderam, e, num primeiro momento, todos se alegraram, mas não continuou assim por muito tempo.
A primeira coisa que repararam era uma tremenda infelicidade, assim como haviam constatado enquanto tateavam o lugar, não havia uma saída. Assim, quase toda a esperança esvaiu-se com essa constatação. Mas, como se isso não fosse o suficiente, repararam que, apesar de não haverem reconhecido pela voz, eles conheciam gente daquele lugar, repararam até que estavam unidos com seus inimigos.
Assim a luz desencadeou o caos. E, sob a luz forte, sob a tão bondosa luz da verdade, a escuridão fez falta.

Sob a luz forte.

A luz era forte. Ela quase te agredia. Você recuou e semi-cerrou os olhos quando ela te encontrou. A luz era pesada. Fora dela só existia a escuridão. Eu te pedia para se virar lentamente, observava cada canto do seu rosto.
"Agora, olhe pra mim... isso, levante a cabeça, se incline um pouco."
Os seus olhos, oh, seus negros olhos. Impossível fugir deles, olhos decididos, fortes, brilhantes. Você olha através de mim. Você me perfura. Parece estar tão longe e tão perto. Com o olhar quente, distraído mas conciso. Um olho é ligeiramente maior que o outro, a curva deles faz com que sorriam sempre. Mesmo quando chora - se é que chora. Olhos compridos, um olhar distante. Sua sobrancelha que se arquea sempre que está concentrado, acompanha o tamanho dos olhos, é quase fina, é quase cheia.
Dos seus olhos sou guiada para seu nariz, sigo a ponte e dou numa seta. A sombra me revela a delicadeza dele, é fino, é nobre. Te dá um ar mais jovem, te deixa quase arrogante. Mas ele cai bem na totalidade do seu rosto. Ele é simples, minimalista, reto. Não tem exageros e não deixa nada faltando. Dos olhos me leva à boca, uma ponte, um caminho.
Sua boca, seus lábios. Talvez sua boca seja pequena, talvez fina demais. Ela tenta se esconder, mas não consegue fugir com esse rubro, esse vermelho que a cobre, que tenta brilhar. Seus lábios sim, tem o tamanho ideal, tem carne, tem vida, tem desejo. Eles fazem uma curva leve para cima, como se você quisesse sorrir mas se segurasse. Pode sorrir.
"Adoro sua boca."
Você sorriu, claro. Depois se escondeu, mas sorriu. Seus lábios se separaram e mostraram um sorriso perfeito, brilhante, reto, feliz. Sua boca curvou-se, desdobrou-se num sorriso inocente. Seus olhos seguiram as sobrancelhas que se arquearam, quase fechados, com as marcas na pele de todos seus risos e sorrisos.
Sua pele, branca, pálida, alva. Podia-se dizer que toda a vida fora sugada de você. É tão branco, é tão cera. Sua pele é macia, mas você deixa uma barba por fazer, p'ra não parecer tão assim, tão delicado. Essa barba, com ar de desleixado. Cerrada, cobrindo seu pescoço, seu queixo. Sua pele, tão clara. Com três pintas embaixo do seu olho direito. As três marias, como eu dizia. Te dão uma nova graça, uma marca autêntica.
Você está impaciente e mordisca o seu lábio com os dentes. Joga seu cabelo p'ro lado, inquieto. Sua franja se desarruma, quase fica em cima do olho. Seus cabelos escuros quase somem nessa escuridão, posso ver sua franja que cobre metade da sua testa e os cabelos que cobrem sua orelha, nada mais. Seu cabelo, sempre comportado, achocolatado, que você teima em arrumar e desarrumar. Corrigindo o lado da franja, com medo do vento.
*click*
"Ficou linda"
Você me pede p'ra ver a foto, mas antes disso eu paro e a observo. Capturei cada detalhe seus sob a luz forte. Seus olhos de jaboticaba. Seu nariz grego. Sua boca de cerejeira. Sua barba imatura. Suas pintas. Suas marcas. Seu cabelo. Tudo condensado n'um belo diamante. Não deixei escapar nada, além de quem você realmente é.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Ordinária.

Seu olhar sempre foi tão diferente,
seu sorriso sempre contente.
Suas brincadeiras inocentes,
me fazendo seguir em frente.
O tempo passava,
mas você não mudava.
Dia após dia,
repleta de alegria.

Às outras você nunca foi igual,
nunca quis ser alguém normal.
O tempo passava,
você não mudava.
Por dentro, continuava criança,
aproveitando sua infância.

Eu sorria,
contagiado por sua alegria.

Você era tão singular,
me fazia te amar.

E o tempo passou,
"todo mundo muda", você me disse.
Meu poema perdeu a rima,
pois você se tornou somente mais uma.
Como elas,
ordinária.

Ordinária.

Por um segundo, achei que eras diferente.
Achei eras única, tremendo desvario.
Não me fizeste contente
Não com este seu jeito tão ordinário.

Pensei que nascêramos um para o outro.
Nossos gostos eram tão iguais
Mas outra vez estava louco.
Eu que tenho a psique feminina, teus gosto eram normais

És uma qualquer, eis tudo.
Lá fora existem outras milhões que eu poderia amar.
Tenho pela frente minha vida e o mundo.
Só não me lembro de uma coisa: de quem eu estava a falar?

sexta-feira, 1 de abril de 2011

All-stares.

Calçados. Calçados por todos os lados. Eis o que se podia ver. Sandálias, tênis, sapatos, pantufas, e outros muitos. Era uma reunião de calçados ou algo parecido.
E nesse mundo dos calçados, havia calçados de todos os tipos, Oxfords cheios de classe, confortáveis sandálias, pantufas que aqueciam a todos, e All-Stares.
Sim, All-Stares, e de todos os tipos. Com canos longos e curtos, com ou sem cadarços, de todas as cores que você pode imaginar. De todos os tamanhos e condizentes com todos estilos. Cada All-Star com sua singularidade, todos diferentes, alguns mais tradicionais, outros, uma completa vanguarda.
Todos eles eram diferentes, uns não gostavam de outros, mas isso é normal, com tanta diversidade como a que existe entre os All-Stares. Mas, apesar das diferenças, todos queriam apenas uma coisa: um par para que fossem completos.

All-stares.

Eu caminhava de cabeça baixa, como sempre. Era guiado pelos meus all-stares que me levavam para todos os lugares. Um, depois o outro, um, depois o outro. Seguindo pelo corredor, via outros tênises, sapatos e calçados em geral. Um par de sapatos apressados aqui. Um casal de quatro tênises da nike acolá. Alguns crocs por aí - é. Eu era ultrapassado e ultrapassava, de acordo com a vontade dos meus all-stares negros. Geralmente eles eram muitos quietos e não gostavam muito daquelas sandálias, rasteirinhas, salto-altos ou tênises da moda. Eles, na realidade, eram bem conservadores, um pouco racistas, admito, e só davam bola para outros all-stares. Um pouco mais à frente, paramos numa escada rolante. Os meus all-stares não são apressados e evitam esforço, não são daqueles que andam na escada-rolante, pois sabem que todos chegarão ao outro lado. Estamos na escada e podemos ter uma vsão mais privilegiada dos calçados alheios. Mais alguns sapatos sociais. Um par de sapatos sociais de frente com um par de saltos finos. Dois pequenos e pulantes chinelos do ben 10 que acompanhavam um par de havaianas brancas e cansadas. Uma turma de tênises da nike, adidas e reebok, grandes e chamativos e com molas até o cadarço. Mas entre toda essa sapataria, meus all-stares avistaram uma pretendente. Eram dois belos all-stares vermelhos, eram pequenos e deicados, escarlates e tranquilos. Cada um estava num degrau da escada, e o de cima subia e descia como se dançasse. Ao chegar ao topo da escada, os all-stares vermelhos calmamente caminharam pela passarela que dá até a plataforma do trem. E, chegando ao topo da escada-rolante, meus all-stares pretos seguiram aquele atraente par. Andando com certa pressa, notei que seguiam aquele outro par de all-stares. Naturalmente, por pura curiosidade, levantei-me para ver quem seria a dona dos calçados. Só pude vê-la de costas, porém parecia graciosa: era baixa, seu cabelo era curto e louro, tinha um corpo delicado que combinava com o tamanho dos all-stares. Andava com um ar de despreocupação e no ritmo da música que ouvia em seu headphone azul. Encontramos outra escada rolante. Descendo a escada, meus all-stares não podiam ver o atraente par que seguiam e, por isso, ficaram inquietos no degrau que rolava. Finalmente na plataforma, meus all-stares queriam encontrar o outro par. Para lá, sapatos; saltos; sandálias; tênises com molas; tênises com três listras; chinelos; sapatos correndo; saltos fofocando; sandálias sentadas. Para cá, sapatos; tênises; saltos; pequenos tênises rosas perseguindo pequenos tênises azuis; all-stares; saltos; all-stares! Mas... não... all-stares brancos, daqueles sem gosto ou personalidade, não eram os que procuravam. Continuaram a procurar e, quase no fim da plataforma, encontraram seus all-stares vermelhos. Eles estavam lá, o da direita um pouco levantado, quase flutuando de alegria. De frente para eles, um par de all-stares azuis. E olhando para cima, vi a menina entrelaçando seus braços num rapaz que eu não observei muito para descrever, só sei que usava all-stares azuis. Então fui esperar pelo trem. Pois bem, não me importei para o fim da caçada, mas os meus all-stares ficaram um pouco chateados, o mais triste que um calçado poderia ficar. Com os cadarços frouxos e a língua de fora.