quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Fraca.

Disseram-lhe que era fraca, e isso a fez pensar: realmente era fraca? Bem, fisicamente não era a pessoa mais forte ou atlética do mundo, mas não era exatamente nesse sentido que diziam isso. Diziam que era fraca por não aguentar críticas.
Sentia-se fraca, sabia que talvez não fosse realmente fraca, mas se sentia fraca, isso era um fato. Mas não é assim que as coisas são, o discurso não constrói a realidade, mas insistiam nisso, pensava que se dissessem que era fraca, ela era fraca, se dissessem que não era boa o suficiente, ela não era. Estava errada, crescera dando mais atenção aos outros do que deveria, talvez isso realmente fosse uma fraqueza, mas não tão grande quanto a que eles lhe faziam pensar. Por vezes ela mesma repetia palavras como estas para si mesma, a sociedade está podre, tudo que dizem está errado. Mas mesmo assim sentia-se fraca.

Fraca.

Fraca, como era fraca. Só de olhá-la podia-se ver sua fragilidade, o rosto fino, pálido, os olhos caídos. Era fraca, tão fraca. O cabelo escorrido, o sorriso pela metade. Fraca.
Todos os dias chegava pela manhã, devagar, silenciosa, não queria causar confusão ou alvoroço, vinha porque tinha de vir, mal tinha amigos, apenas respondia ao que os outros perguntavam, sem delongas, sem demora.
Até que alguém levantasse o tom, até que alguém lhe dissesse que fez algo errado, ou simplesmente implicasse com ela.
Era algo dar errado, como sempre dá, que ela já fraquejava, seus lábios rosados, pequenas pétalas, começavam a tremular. Seus olhos de jaboticaba se afogavam num mar de lágrimas tristes, ela levava as finas mãos à face e tentava esconder toda sua dor. Levantava-se e ia para o banheiro. Tão fraca.
Todos podiam ouvir sair de lá uma voz fina, aguda e embargada em melancolia. O choro era contido, os suspiros calculados, todos já sabiam decor todo a sequência. Os lábios vacilantes, os olhos ensopados, as mãos cobrindo a face envergonhada, o choro. A Fraca.

E dia após dia, apesar de tudo que falávamos pelas costas dela, ela vinha ser fraca. Mostrar sua fraqueza para o mundo, dia após dia, ela lutava, contra tudo, contra todos, principalmente contra si mesma. Dia após dia, ela estava aqui, apesar de tudo, e não aguentava, e ruía. Aquela garota, feita de porcelana, bela e frágil, que nunca fez mal a ninguém, sofria. Todo dia ela sofria. Noite e dia devia sofrer. 
Mas ela estava sempre aqui, até ontem.
Como a porcelana, se formos muito brutos, quebra. E em sua fraqueza, quebrou.
Ela era tão fraca, e isso a tornava a mais forte.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

De mãos dadas.

No começo seguravam minha mão
apenas com um dedo.
O tempo passou e quando resolvi andar,
para que não caísse, seguraram minha mão.
De mãos dadas eu me sentia seguro,
querido.
E mais à frente, já não queria soltá-los,
e segurei na primeira mão que me veio à frente.
Para seguir em frente.
De mãos dadas eu ia, para continuar de pé.
Me agarrei a uma mão firme, comprida,
que me apertava e machucava, 
porém não me soltava, e isso me era suficiente.
Vi algo lá longe, algo que realmente mexeu comigo,
precisava correr, me soltar, ir lá sozinho,
lutar.

Ela não me soltou.
Corri mesmo assim.
Ela não me soltou,
e caiu.
Saiu machucada.
Tive de fazê-lo.
Para segurar a mão
da felicidade.

De mãos dadas.

Por vezes imagino segurar tuas mãos.
Nada de mais, apenas meus dedos entre os teus,
Mas isso dá-me uns calafrios,
E um sorriso bobo.

Sim, o mero imaginar
De segurar tuas mãos pela primeira vez
(E última, querida, como são passageiras as alegrias)
Alegra-me de maneira ímpar.
A simplicidade do pensar em nossos dedos se abraçando,
Conhecendo-se pela primeira vez,
Levam-me para o paraíso.
A ideia do calor de tuas mãos
(Ou tuas mãos podem estar geladas, faria sentido).
Conseguem fazer de mim o homem mais feliz.

E, de repente, estamos de mãos dadas.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Pugilista.

Uma grande parte das apostas dizia que ele cairia cedo, entre o primeiro assalto e o terceiro, o que fazia sentido, pois era jovem e inexperiente, sem contar que o adversário era um lutador renomado, embora agora decadente.
O seu velho treinador discordava, acreditava no potencial do garoto, ele havia vencido diversos torneios quando amador, assim como seus números provavam que ele muito provavelmente daria trabalho a seu adversário.
A sua namorada, todavia, defendia que ele não lutasse. Ela odiava o boxe, cansava-se se vê-lo chegar em casa com tantos hematomas, não aguentava acariciá-lo e causa-lhe dor, o vermelho do sangue não combinava com o azul de seus olhos, ela dizia a ele de maneira bem humorada, pois apesar de não gostar, apoiava o sonho dele por amá-lo tanto.
Ele jogou a toalha.

O Pugilista.

O sino bateu e ele friamente partiu para cima de seu oponente, tinha um olhar duro mas seus olhos estavam em chamas. Cada passo era calculado e de acordo com o movimento do outro ele ajustava o seu próprio, quando alcançou a distância ideal, já cravada em sua mente, levantou sua guarda. As luvas prateadas apontavam para o outro lado do ringue, sabia o que fazia, sempre fizera assim e continuava insuperável.
Um, dois, três. Os dois primeiros atingiram em cheio o rosto do desafiante que, balançando-se para a esquerda, desviou do terceiro jab. "Como um escorpião." Disse para si mesmo, enquanto lançava o braço para trás e, ferozmente, o trazia para a frente, parando apenas na face do jovem boxeador. O Escorpião Rei fez mais uma vítima, sua ferroada estourou no adversário que bambeou, mas conseguiu se equilibrar, ainda zonzo ele tentou recobrar a consciência, mas parecia muito preocupado com algo acima do ombro do campeão, talvez algum lugar na platéia "Vou te ensinar a prestar atenção!", rugiu em silêncio o lutador com seus quase dois metros de altura e, como uma serpente, alcançou o bem menor desafiante, um soco compacto acertou seu estômago, ele se curvou todo, sentia suas tripas prestes a sair pela boca, não podia se esquivar do direto no queixo mas o sino o salvou.
No intervalo seu técnico não falou nada além do habitual, sabia que era inútil, afinal, ele sabia o que fazia, além disso nunca fez o tipo que aceita conselhos facilmente. Do outro lado, o novato estava vermelho de dor, sua palidez habitual sumira, seu sorriso não foi visto durante o primeiro round. Ele continuava procurando por algo fora do ringue, o que enfureceu o campeão. 

O sino bateu e ele levantou de um pulo, bateu as luvas e foi terminar o que começara. Os pés mal tocavam o chão, ele era veloz para um homem tão forte, ziguezagueava no sentido do adversário, olhou em seus olhos e via que estava distraído, desconcentrado. Precisava dar-lhe uma lição, tentou de novo um soco compacto no estômago, mas foi bloqueado, com um rápido jogo de pernas deu a volta na defesa e acertou o olho esquerdo do oponente. Ele foi para o chão de tal forma que todos diriam ser impossível levantar, caiu de uma só vez, como se a vida tivesse se esvaído dele. Mas o Escorpião sabia que nada é impossível no Boxe. O juiz levantava os dedos e a contagem chegava ao sete quando o rapaz começou a levantar, ele ergue suas luvas douradas e o árbitro deu continuação à luta.
Seu olho já começava a inchar, olhou para o campeão, ele era enorme, quando se aproximava como um touro crescia ainda mais, sua pele negra suada brilhava no centro do ringue, ele ocupava a arena inteira sozinho, seria impossível derrotá-lo, mas em sua curta trajetória pelo pugilismo sabia que nada era impossível. 
Eles se enfrentavam de longe, com a vantagem de ser maior o campeão atingia mais jabs, mas nada que causasse efeito, enquanto o adversário tinha de se esquivar por baixo de seu braço para poder atingi-lo, no final do segundo round finalmente acertou um soco, mas foi como socar uma parede e o atingido não teve a menor reação. O gongo bateu e eles se sentaram novamente.
Seu treinador pedia foco, pedia audácia, coragem, mas sabia que apenas a sorte poderia salvá-lo. Sorte. A sorte é um fator crucial para alguns, é uma verdade virtude, mas ele não poderia pedir que ele fosse sortudo. Seu olho foi desinchado o possível e agora ele podia abrir os dois normalmente, e com isso olhou novamente para a arquibancada. 

O sino anunciava o terceiro round. Os dois ficaram uma eternidade parados em seus cantos, o cabelo louro do desafiante balançava com um ar quente que tomava o ringue, ele mantinha os olhos grudados em seu frio adversário, mas ainda prestava atenção lá atrás, em algo, em alguém. O primeiro a se movimentar foi o de calção prateado - da mesma cor das luvas -. Ele se aproximou metodicamente, pôs sua guarda e parou. "Essa é a sua chance de entrar nessa luta, não espere que eu a leve até você" ele disse com os olhos, o de calção vermelho se postou para atacar, suas pernas se movimentaram rápido e eles estavam praticamente grudados um ao outro, os rostos quase se chocaram, ele deu uma verdadeira agulhada no corpo do campeão, outra com a esquerda, e outra, chegou à quinta e viu que de nada adiantaria, o negro quase abriu um sorriso, sua luva esquerda, preenchida por um punho fechado, voou do lado da cabeça do jovem. O jovem, preenchido por uma alma quebrada, voou até a lona. No cinco ele estava de pé. Via dois árbitros, dois adversários, e não via nada lá atrás. O juiz seguiu a luta, e o sino bateu.
Seu treinador mandava acabar logo com isso, mas o campeão não aceitava a sugestão. Ele ria e balançava a cabeça negativamente. 

O quarto round começou com uma chuva de socos do desafiante, ele não parou um segundo para respirar, sentia que o campeão estava por ruir, mas sabia que não aguentaria esse ritmo por mais dois turnos. O campeão somente na defesa sentia o potencial do adversário, mas queria mais. O gongo bateu e eles se sentaram novamente.
O coach do mais inexperiente pedia para que ele se poupasse e não cometesse loucuras. Ele rebatia dizendo que de nada adiantaria ir até o final, então era melhor tentar acabar com tudo antes, de uma forma ou de outra.

Quando o quinto round se iniciou, ele parou para sentir. Sentia toda a força do campeão, que podia ganhar sem mesmo lançar um golpe sequer; sentia a platéia, torcendo por ele, mas desacreditada, sentia seu treinador, perdido, talvez mais do que ele, apenas orando para que conseguissem. Sentiu medo, e com o medo, sentiu coragem. 
Afundou seu pé direito no tablado, tinha de usar todas suas armas.
O campeão se surpreendeu por um segundo, ouvira que ele fazia isso, mas não achou que usaria contra ele. "Eu odeio canhotos." Pensou, sorriu de lado. Foi em direção do adversário, sem guarda alguma "Me mostre porque te chamam de Príncipe, me mostre que pode roubar minha coroa", lançou um golpe rápido de esquerda, um soco espelhado chegou ao seu rosto antes, ele forçou seu peso para não sair do lugar. Sorriu. Antes de fazer o movimento seguinte, um direto de esquerda acertou seu rosto, deu dois passos para trás e bufou. Levantou as mãos na altura do rosto, mudou sua postura, gingou até chegar ao Príncipe, os dois lançaram um direto. Ele acertou em cheio, e conseguiu abafar o adversário fazendo com a cabeça o mesmo movimento que o soco. O sino interrompeu a batalha que se inciaria.
Ele caminhou como se em cada passo carregasse toda sua vida, olhou para o treinador e apenas balançou a cabeça. O velho concordou "ele é bom". "Ou louco" completou o boxeador. O resto do minuto ficou calado, observando seu adversário que tentava estancar o corte que o soco causara em seu supercílio.

O sexto turno levou mais meio minuto para se iniciar, pois o juiz fora analisar se o jovem boxeador poderia continuar. Eles caminharam lentamente para o centro do ringue mas permaneceram sem se agredir, o desafiante olhou de soslaio para trás, e o campeão se irou, rangendo os dentes, partiu para o adversário, seus socos caíam como mísseis de bombardeiros, voavam e assoviavam rumo a cabeça do Príncipe. O príncipe valsava, desviava dos socos óbvios, pulava para trás, dava a volta no ringue, não poderia correr o risco de abrir o ferimento. O campeão então parou por um momento a fim de se recompor. Quando deu um passo mais sóbrio o sino bateu. Percebeu que perdera uma grande oportunidade, e preocupava-se mais em estar caindo numa confusa tática do oponente.
Quando se sentou, o jovem, que parecia um rapaz franzino e magricela perto do robusto adversário, estava esgotado, não aguentava mais, tinha de acabar logo com tudo.

Nem mesmo o sino soou e os lutadores já se digladiavam no centro do ringue, os socos voavam e passavam  a polegadas dos seus alvos, o maior lançava socos que poderiam derrubar árvores, o menor lançava três vezes mais socos, mas os que atingia não eram suficientes. O ébano campeão acertou uma esquerda no corpo de ebúrneo adversário, ele se contorceu, mas voltou ao lugar, enquanto o campeão forçava seu punho, ele resistiu à dor e aproveitou para acertar o Escorpião, um, dois, três cruzados em sua face, como se batesse um sino de igreja. O Rei ficou zonzo, cambaleou para trás, o Príncipe desferiu mais um golpe, direto no meio do rosto. Ele sentiu a vibração do soco em toda sua espinha, sabia que tinha causado estrago, tirou a luva lentamente, o adversário pareceu planar por alguns segundos, fora de órbita, fora de si. Caiu, seco, duro. Sua queda reverberou, a platéia segurou a respiração. O desafiante olhou novamente para onde sempre olhara, depois deu as costas, como um paladino que levanta um olifante, ergueu seu punho para a torcida. Todos gritavam, afinal de contas, o amavam. O ruído era ensurdecedor, mas todos ficaram mudos quando com quatro segundos o campeão levantou-se, ainda abatido, mas de pé. O juiz fez sinal para prosseguirem, mas novamente o sino bateu.
"Acho que é ele, acho que finalmente posso passar o bastão" disse o campeão com uma ponta de ânimo em sua voz, o treinador não respondeu, apenas interrompeu o sangramento do nariz de seu lutador.
Mas antes de levantar, ele percebeu que o rapaz continuava olhando para algum lugar, ele se virou e procurou algo de diferente, mas para ele a platéia sempre foi apenas uma paisagem, ergueu-se e quis decidir as coisas.

O sino bateu. Os lutadores se postaram. A platéia gritava. O campeão caminhou. O desafiante aguardou. Três socos, bloqueados. Um direto. Esquivado. Engatilhou um golpe. O soco do Escorpião. Muito aberto. Muito óbvio. Foi contra-atacado. Caiu.
A platéia gritava ainda mais, flashes de todos os lados, era isso que todos queriam ver, o campeão local tomar o trono. Conquistar o cetro. O Príncipe podia derrotar o Rei, é o rumo natural das coisas.
Ele olhava novamente para a platéia, seus olhos cerúleos pareciam preocupados, mais preocupados do que com a própria luta. Do chão o campeão observava a procura do desafiante. Levantou-se lentamente, o juiz estava no seis, ele se levantou seguro. Postou a guarda, antes do juiz liberá-lo, gritou ao adversário. "Preste atenção na luta. Você é um lutador." Surpreso o adversário somente sorriu.
Era esse sorriso que todos queriam ver. Os dois se aproximaram novamente. Um jab esquivado, outro protegido, o terceiro acertou mas não tinha força. O Príncipe sabia que ia ganhar, a luta era dele. Mas ele não contava com outro soco do Escorpião. O soco feio venenoso, sorrateiro, o acertou, o perfurou, bem em cheio, a presa foi atingida. Ele se agarrou às cordas para não cair, suas pernas não lhe obedeciam. Ele foi ferroado pelo Escorpião diversas vezes, estava prestes a ceder, seu corpo não se aguentava em pé. Mas o campeão, parou, respirou, sorriu e quando foi finalizá-lo o gongo intercedeu uma última vez.
"O próximo é o último." Disse o treinador, o Príncipe murmurou algo enquanto recuperava sua energia.
"Um pugilista precisa saber apanhar. Um pugilista precisa saber sofrer. Um pugilista é masoquista. Ele sorri quando leva socos, ele está feliz no chão, derrotado. Qualquer um sabe vencer. Um verdadeiro pugilista aprende a perder. De uma maneira ou de outra." O Escorpião falou, jogando as palavras no ar.
"Está na hora de aprendermos."

O sino bateu. Nada mais importava. O campeão olhou para seu oponente, o primeiro digno de lhe tomar o cinturão. Mas ele estava olhando por cima de seu ombro. Ele não entendia, ele se enfureceu, perdeu a razão. Quando ia atacá-lo, o Príncipe olhou em seus olhos, havia um brilho, um brilho que ele não notara até então, os olhos inchados não escondiam, havia uma chama, um coração partido, uma esperança, uma vida inteira, um propósito. Era um Pugilista de verdade.
Os dois caminharam ao centro, o Príncipe lançou seu braço de marfim, mas errou em muito, já não tinha mais energia. O Rei lançou seu ferrão, mas o oponente se defendeu formando uma cruz com os braços. O brilho em seus olho não era fé, era algo mais real, era algo maior. O pequeno quase se desmontou ao aguentar o impacto do maior. Ele pôs o pé direito à sua frente. "Eu odeio canhotos" o Escorpião disse ao Príncipe enquanto ria. O agora campeão riu e disse "Eu acho que odeio lutar." E acertou um soco, um raio que cruzou à frente do Escorpião.
Ele caiu, todos ficaram em silêncio. Dez segundos passaram, sessenta. Ele caído, o vencedor de pé, olhando para cima, os olhos vazios. Ele vencera todos, mas não a si mesmo. Sem sorrir ergueu o cinturão.

O Pugilista viu o outro ir embora, para dar as entrevistas de campeão. "Campeão". "Ex-campeão". "Ex-Pugilista". 
Foi nocauteado. Jogou a toalha.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

A Locomotiva.

A locomotiva de aço
seguia,
invariavelmente,
os trilhos de aço, postos sob ela.

A locomotiva de aço
levava-nos,
inquestionavelmente,
sobre os trilhos de aço.

A cidade de pedra
servia-nos de paisagem
tentando, sem sucesso,
tocar nossos corações de pedra.

A locomotiva de aço
parava em doze estações,
todas semelhantes,
mas nunca iguais.
Por mais que passássemos por elas duas vezes.
Nunca, jamais.
Iguais.

As estações semelhantes:
alguns desciam, tantos outros subiam.
O céu sobre todos mudava,
e mesmo que fosse igual, não o era.

A locomotiva seguia, 
sempre, sempre, na mesma velocidade.
Apesar de termos a sensação
de que essa ou outra estação, passou rápido.

Nós seguíamos,
na locomotiva, para onde ela nos levasse,
trocamos de lugar, de vagão, 
mas todos seguem na locomotiva
até que cansem.

A locomotiva não tem destino,
tampouco nós,
ela segue em círculos,
e nós seguimos nela.

A locomotiva não parava, 
além dos poucos segundos,
ao alcançar uma estação.

Nós podíamos parar
ou seguir dentro dela,
mas quando se resolve sair,
dizem por aí que não se pode voltar.

A locomotiva de aço é quase uma entidade.

Por vezes esquecemos que estamos nela,
e queremos apressar ou retardar o trajeto,
entre uma estação e outra.
Mas a locomotiva de aço,
sabe seu próprio tempo.   
Seu próprio caminho.

A locomotiva.

Hoje a locomotiva descarrilhou,
Perdeu o caminho e colidiu com outra composição.
Felizmente nada tão grave ocorreu,
Apenas trezentos e um feridos
E apenas um morreu.
Mas que é que são trezentos e um dentro de onze milhões?
Ou, ainda mais, que é um dentro de onze milhões?

Aqui nós somos um mero número,
Trezentos e um em onze milhões,
Nada para todos, estatística para poucos,
Por pouco tempo, é claro,
Logo outra locomotiva descarrilha,
Um caminhão capota,
Um incêndio mata centenas.

Só levantamos todos os dias para fazer a locomotiva andar,
Cada dia mais rápida, cada dia pior.
A locomotiva não pode parar,
A locomotiva não pode dormir,
A locomotiva se orgulha disso,
Mas não deveria.

Antes da morte eu vivia em uma constante doença,
A locomotiva me destruía aos poucos.
A fumaça me enchia,
Os pulmões enegreciam,
Até chegar ao ponto em que não se diferenciava mais.
O que é a doença?
O que sou eu?

Meu pulmão dói, todos estão aborrecidos,
Olho em volta e todos se odeiam,
Mas não deveríamos odiar uns aos outros
A culpa não é nossa,
A culpa é de quem escolhemos
Para conduzir a locomotiva.
Pois há quem diga que nem sempre foi assim,
Que houve um tempo em que éramos felizes,
Dentro dos trens de passageiros
Podíamos andar pelos corredores sem medo,
Podíamos visitar a cabine vizinha,
E encontrar alguém,
Alguém mais amável,
Alguém mais seguro,
Alguém inocente,
Jovem e belo,
Alguém mais puro.

É claro, poderia ter sido pior,
Mas perdemos apenas um.
A locomotiva não hesita em atropelar um,
Se milhões ficarem bem com isso.
Mas esse um era trezentos e um, no fundo,
O um aceitaria ser parte de apenas trezentos e um,
O um não queria ser onze milhões, não.
Sonha-se em ser um grande escritor,
Se não der certo, crítico literário serve,
Pelo menos viajar com o amor de sua vida
Em uma carruagem ou coisa simples assim.
Mas não, que tal viajar sufocado em uma locomotiva
Onde não faz diferença e que só o vê como um número?
Os tempos estão difíceis para os sonhadores, é claro.

A locomotiva descarrilhou,
Atropelou-me.
Mas eu só queria poder ver as estrelas.