segunda-feira, 29 de julho de 2013

Estrela Azul.

"As estrelas são fotografias do passado"
Ele me disse zombando,
eu as observava,
há quanto tempo eu não fazia isso?
Muito tempo, um bom tempo,
tempo passado.

Ele sabia disso, devia responder algo como
"Eu sei disso"
Mas não, fez que não ouviu.

Passado, ele sabia disso,
as estrelas, tão distantes como o tempo que se foi,
tão brilhantes como o sorriso infante,
o passado era uma estrela a brilhar.

Lembrava de já ver uma estrela parecida,
azul, cintilante.
Mas não era tão grande assim,
não tinha a certeza de que era a mesma.
Azul e cintilante.

O agora já é passado,
o futuro será passado,
o que nossos olhos registram são passado,
a luz do sol que queima nossa pele, passado,
as palavras que prefere, passado,
os versos, o ritmo, a música,
passado, passado, passado.

As estrelas são só fotografias do passado,
as fotografias são o passado concreto em nossas mãos.
Ele sempre gostou de fotografias,
estáticas, perfeitas.
Mas prefere as estrelas.
O passado escrito no céu,
a esperança que brilha em azul.

Estrela Azul.

Estrela Azul ainda brilha.
Todo o passado corre
Nas pistas de toda vida.
Pistas do que já foi,
Do que pensou em ser,
Do que poderia ter sido.

A casa do chão vermelho,
Alegrias que não são lembranças,
Alegrias ensinadas, contadas,
Vividas talvez,
Sobretudo contadas.

Nada extraordinário
O melhor da classe,
Classe pequena,
Nada extraordinário
Perto de tantos outros.

Estrela Azul,
Vontades e desejos,
Perdidos, tão distantes.
Tudo que tornar-se-ia tão fácil,
Vontades e pedidos.
Desejados, tão distantes.

As brincadeiras,
Os bonecos,
Os desenhos,
Os jogos,
E um comunismo por medo de ser derrotado,
Comunista antes de saber de comunismo,
Mais comunista que jamais seria.

A casa da rua de cima.
O lobisomem da colher de sal.
Alucinações de seis anos de idade.
Futebol de portão de um só jogador.
Aniversário chuvoso e gelado.
Edênicos jardins de Esperança.

Grande literatura de pequeno
Com Marcelos, Princesas, Marmelos, Ervilhas e Martelos,
A arca de Noé,
E um poeta em potencial? Não sei.
Poeta inato? Não sei.
Poeta? Não sei.

Estrela Azul que se apaga.
Ecos, nada mais,
Somos apenas isso no final,
Memórias, lembranças,
Álbuns, histórias.

domingo, 7 de julho de 2013

Perdão.

João sempre achou que, quando fosse chegada a indesejada das horas e ele tivesse de se encontrar com aquele senhor lá que manda em tudo, ele teria de responder muita coisa, explicar-se por outras, apenas pedir desculpas por outras inexplicáveis, mas não foi bem assim que tudo se passou.
Foi há umas duas semanas, era quarta-feira, João tinha saído cedo pro trabalho, beijou a esposa que ainda estava na cama, a Joaninha que ainda dormia porque já entrara de férias e foi junto com o Fernando (o danado tinha ficado de recuperação em português) para o carro, deixou o Fernandinho na escola com um beijo na testa e um sorriso, seguiu dali para o escritório. O escritório o aporrinhava, bons-dias amargos de café, o mesmo barulho o tempo todo do toque dos teclados de todos os trabalhadores em seus teclados repetidos o dia todo o tempo todo, o Sr. Albuquerque a encher-lhe o saco com solicitações pendentes dos nossos colaboradores em Denver para amanhã e um dossiê de tantas páginas que, ei, eles querem que você o refaça. Maldito Sr. Albuquerque. Passou a manhã vendo o relógio tiquetaquear e empoladamente tentando escrever o dossiê dos nossos colaboradores até que a mais desejada das horas chegou, 12h.
Horário de almoço cheio de sorrisos mais verdadeiros e mais largos que de menino de catorze anos quando pensa que está amando, afinal era quarta feira, dia de feijoada. Ia com os amigos do escritório para o restaurante que ficava a duas quadras abaixo. Ia, quando ia atravessar a avenida o Otávio da contabilidade gritou pra ele alguma coisa sobre o jogo da seleção, quando ouviu, parou e virou pra dizer que aquela copa era nossa, um ônibus que João achou lindo, imenso e laranja (logo logo laranja e vermelho), maior que os sonhos, as vidas de sua família ou qualquer outra coisa passou por cima dele, os que estavam lá dizem que a cena foi feia.
Chegando lá em cima, um velhinho bem barbudo lhe sorriu. João o reconheceu na hora, sabia que era chegado o momento, pensou que precisaria justificar tanta coisa, traíra sua esposa com a Lurdes, quando mais jovem fizera tanta coisa errada, era chegada a hora e ele não fazia ideia de como se justificaria. Ia abrir a boca quando, tal como o ônibus, o velho interrompeu seus pensamentos e tomou a dianteira, dizendo a ele que tudo que queria era o seu perdão.

Perdão.

Sua família estranhara sua vinda, ele disse que precisava de um tempo para se distrair, esquecer os deveres eclesiásticos, pensar em outras coisas, arejar a cabeça. Logo voltaria, em alguns dias, uma semana.
Estava calado, não conversava muito com eles, estava cansado, não se unia às orações. Estava longe, não estava. Ficava apenas isolado em seu quarto, desolado, algo estava errado, mas não sabiam dizer o que era, algo errado aconteceu.
Ele, trancado em seu quarto, pensando em como errou, em como estava errado. Errou para ele mesmo, errou para o que pregava, errou para seus irmãos, errou para todos, principalmente para com ela. Salete...  a maior vítima disso tudo, não merecia isso, não merecia nenhuma das injurias que lhe acometeram. Era linda, era graciosa, era simples e, acima de tudo, era uma vítima. E ele, mais um culpado. Pobre Salete, tudo que queria ele queria era seu perdão.


Os clérigos estavam preocupados com ela, alguns tinham pena, outros secretamente a julgavam. E ela ficava jogada pelos cantos, triste, deprimida, desesperançosa, culpada. Sentia agora que tudo que fazia estava errado, sentia-se um fardo para os frades que lhe acolheram, disse que ficaria alguns dias no convento e algumas semanas já passavam, vagarosas, dolorosas. 

Sentia que tudo era sua culpa, só podia ser sua culpa o desejo de tantos homens por ela. Só podia ser sua culpa que eles quebrassem as barreiras do certo para possui-la, só podia ser sua culpa todos os assédios. E por isso queria perdoar Frei Fábio, ele não era o culpado, ela quem era. Nenhum dos homens era o errado, ela quem era. Mas não podia, não havia em seu ser a capacidade de esquecer todos os insultos, de absolver o desrespeito. 
Desrespeito. Sabia, entretanto, que também errara, desrespeitou José tantas vezes, tantas e tantas vezes. E sabia que a culpa era dela, sabia que apesar do erro dos homens em cortejá-la, não deveria ter cedido, não deveria achar que José a perdoaria, não poderia colocar em jogo seu sentimento, deixar à sorte. José sim, José era a verdadeira vítima, sempre tão tenro, tão terno, tão bom... tão bonzinho, ela dizia. Mas não a perdoou, e ela sabe como ele estava certo. Não a perdoou, por mais que lhe doesse o coração, ele estava certo. Ele era a verdadeira vítima. Pobre José, tudo que ela queria era seu perdão.


O tempo passou,  a culpa não, a dor não.

Não conseguia seguir em frente, não conseguia sair de lá. Por mais que sentisse que já era hora, não podia.
Bateram à porta.


A moça foi abri-la, a porta era quase tão pesada quanto a culpa que ela carregava nos ombros, quase tão grande quanto a dor que trazia no peito, quase tão dura quanto o golpe que levou. Girou a chave de ferro, fria como seu sorriso nesse último mês. Arrastou-a devagar. Abriu-a, os olhos baixos primeiro viram seu sapato, que ela conhecia bem, que ficavam à porta quando ele chegava depois de um dia de trabalho. As pernas compridas, que conduziu os dois à alegrias, ao futuro. O corpo rijo de levar porrada, de suportar toda injuria pelos dois. Os braços fortes, as mãos grandes, que nunca soltaram as dela. Mas o semblante, sempre sereno, estava sério, o cenho franzido. Ela ficou imóvel, ele aproximou o rosto do dela, os lábios grossos se moveram mecânicos, disseram-lhe algo importante ao ouvindo. A jovem não aguentou, desfez-se em lágrimas, afogou-se em prantos. O olhar duro dele se dobrou em dor, os lábios volumosos tremiam. José não aguentou, chorava como uma criança, chorava como quem ama e como amava.



O católico foi abri-la, a porta era quase tão pequena quanto estava sua fé, quase tão frágil quanto seu coração, quase tão fraca quanto ele próprio sentia. Girou a maçaneta, enferrujada como suas preces, as quais não repetira no último mês. Arrastou-a devagar. Abriu-a. Era ela, virou o rosto para não abocanhá-la novamente, mas a dor era tamanha, a culpa era tanta, que mal observaria sua carne bem formada. O erro lhe tomou por inteiro, o desejo deixou seu corpo, como se expele dejetos. Necessário, apesar de sujo, natural apesar de grotesco. Ele a olhou de novo, estava exatamente como lembrava, apesar de evitar olhá-la muito. Mas algo estava diferente, um sorriso lhe tomava a face, um sorriso puro, inocente. Estava feliz, era isso, e nunca a vira feliz, do contrário ele nunca a conheceria, sempre a confessar seus erros, sempre a pedir perdão às pessoas erradas. Ela se aproximou rapidamente, ele se afastou, com medo. Ela o puxou e disse-lhe algo no ouvido. O frade não aguentou, seus olhos marrons como a lama marejaram, seu olhar sujo, purificado com as lágrimas que caíam. Ela sorriu, o dedo comprido secou uma lágrima, os lábios finos lhe beijaram a fronte.



A casa era simples e pequenina. A casa era bem arrumada e aconchegante. A casa era um lar, o lar dos dois. Nos fundos, estavam os três, a derramar lágrimas, a sorrir, a se perdoar. Fábio de batina, que Salete afanara do convento antes de ir embora, as canelas de fora por um erro de tamanho. José com um terno um número maior, o mesmo que usara há alguns anos, o trabalho dobrado fez com que emagrecesse, apesar de ainda ser maceta. Salete tinha o cabelo trançado até o meio das costas, um vestido branco, sem adereço e adornos, simples. Simples como o sorriso dos três.



Fábio, por fim, disse:



"Pode beijar a noiva."