sábado, 6 de abril de 2013

Panapaná.

Estava deitado no colo dela quando a tarde caía. Ele adorava desperdiçar dias assim, com ela, sem fazer nada, vivendo de amor, vinho, boa música e bons livros. Estava deitado no sofá em frente à varanda com a cabeça apoiada no colo dela, a luz clareava metade do quarto e a poeira brilhava flutuando lentamente, aquela simples beleza lhe fascinava. Ela acariciava seus cabelos de uma maneira que ele adorava, enrolando ainda mais aqueles encaracolados e macios fios pretos, quando ele resolveu quebrar o silêncio.
— Acho isso tão lindo, sabe? Essa poeirinha brilhando assim quando a tardinha cai, parecem até umas fadinhas ou coisa do tipo.
— Panapaná. — as conversas deles eram sempre assim, ele falando muito e tentando não parecer idiota, ela sempre monossilábica o destruindo com frases diretas.
— Um panapaná? Como assim panapaná?  — olhou para ela completamente confuso.
— Coletivo de borboletas.
— Ah.
Só assim ele falava pouco, quando não tinha o que falar. Deitou-se de volta e pensou um pouco no que ela havia dito. Sim, aquilo realmente parecia um monte de pequeninas borboletas, era tão bonito. Puxou a ponta do vestido dela como uma criança tímida chama a mãe, olhou naqueles olhos acastanhados e disse:
— 'Cê me dá um panapaná no estômago.
Ela apenas fechou os olhos e sorriu-lhe sem mostrar os dentes. Ele a amava.

Panapaná.

Borboletas. Sentia algo parecido com borboletas em seu estômago. Voavam para todos os lados, as pequenas asas coloridas batendo. Detrás de seu umbigo sentia cócegas, algo engraçado que lhe gelava por inteiro. Algo como: borboletas.
Mas não era possível, sabia que não era, como poderia haver borboletas em seu estômago? Elas não teriam como nascer, tampouco viver, sobreviver. Devia ser reacção de algo que comera, devia ser uma alergia, alguma doença, tudo que não borboletas.
Deixou estar, mais cedo ou mais tarde passariam.
Não passaram, por vezes diminuíam, por vezes aumentavam, mas estavam lá presentes, assim que acordava e antes de dormir, as borboletas voavam o dia inteiro, incansáveis, batiam asas.
Perguntaram-lhe se não era amor, muitos diziam que o amor causava isso nas pessoas, uma sensação como a de borboletas no estômago, apesar de ninguém jamais ter sentido borboletas no estômago. Ele negou, negou veementemente, não acreditava em amor e coisas do gênero, era racional demais para isso. Eram borboletas, só podiam ser.
Resolveu procurar ajuda. No médico, disse que não se sentia bem, que algo estava errado dentro dele, tirou uma radiografia e, na hora do resultado, nada. Não encontraram nada.
Sabia que não devia confiar nos outros, ele devia resolver sozinho.
Enfiou o comprido dedo indicador fundo na garganta, não conseguiu. Respirou fundo, esticou dois dedos e os enfiou novamente, segurou-se, abriu mais a boca e regurgitou no vaso. Nada. Nem uma mísera asa, somente a refeição de mais cedo. Com a boca ainda suja de vômito, soltou um palavrão. "Merda."
Conviveu ainda algum tempo com as borboletas, contou a uma amiga o que lhe afligia. Ela, compreensiva, disse que as coisas melhorariam e lhe abraçou. O abraço fez as borboletas enlouquecerem, revoavam agitadas por sua flora intestinal. Finalmente entendeu: a alergia era culpa dela. Afastou-se.
A principio, surtiu efeito, as borboletas se acalmaram. Voavam menos. Logo sumiriam de vez, afinal era só alergia, alergia à sua amiga. Uma pena, gostava dela.
Mas com o passar do tempo elas ficaram selvagens, ferais, revoltadas. Como naquele abraço, voavam, batiam-se, sentia um farfalhar de asas. Ao pensar em sua amiga, qualquer coisa lhe a lembrasse. Voavam, cada vez mais.
Cansou-se, não aguentava mais, já suportara demais essas borboletas, essa alergia, esse seja lá o que fosse.

A ponta da faca era gelada, sua ponta era muito pontiaguda, encostou em sua pele e tremeu de medo. Respirou fundo, pensou em sua amiga, as borboletas levantaram voo. Tinha de dar um basta. Pressionou a ponta da lâmina, um pouco acima do intestino. Num só movimento, rasgou-se, abriu um corte profundo, mas não sentiu nada. Tirou a faca do buraco que lhe fizera, nem uma gota de sangue. Achou estranho. As borboletas finalmente pararam. Perguntou-se se morrera, se a dor fora tão intensa que estava torpe.
Sentia algo escorrendo dentro dele, querendo sair. Antes que pudesse reagir um bando de borboletas saiu dentro dele, de todas as cores e tamanhos, luzidias, alvas. Voavam, voavam para o alto. Belas, livres.
"Eram mesmo borboletas." Ele pensou, rindo para si mesmo, na boca, um sorriso torto, confuso, ensanguentado.
Ensanguentado.
Lambeu seu lábio e percebeu o liquido quente que escorria, olhou para o corte que fizera. Jorrava sangue. Ficou pálido, de medo e de falta de sangue.
Foi tentar fazer qualquer coisa para interromper o sangramento, mas assim que se movimentou, suas tripas escorregaram para fora, caíram, gélidas, em seus pés.
E lá mesmo morreu.
Com as tripas no chão e as borboletas no céu.